12 novembro 2005

LENDA DAS OBRAS DE SANTA ENGRÁCIA - V

Simão tapou o rosto, sem dizer palavra. Mas no íntimo do seu coração gritava desesperadamente um nome: Violante! O burburinho aumentava. A multidão comprimia-se. A execução ia ter o seu início, mesmo em frente da nova igreja de Santa Engrácia, cujas obras já tinham começado. Cabisbaixo, sempre silencioso, Simão Pires deixou-se conduzir. As ceri­mónias para tirar a vida a um homem sob a égide da Justiça são morosas e solenes. Simão assistiu a tudo como se estivesse ausente. Amarraram-no sobre a pira de lenha. Acenderam a fogueira. Mas quando as labaredas envolveram o corpo de Simão, este gritou desesperadamente: — É tão certo morrer inocente do que me acusam, como estas obras da igreja nunca mais acabarem! O povo que o escutou entreolhou-se, confuso. Que teriam a haver as obras da igreja com o roubo que ele cometera? O povo só mostrou curiosidade enquanto Simão deu sinais de vida. Mal o viram morto, todos se foram embora, como quem regressa a casa após um espectáculo. E tudo quanto se relacionava com o roubo pareceu morrer com ele. Os anos foram seguindo. Imperturbáveis. Sem descanso. Violante, a jovem e gentil noviça de Santa Clara, fez a vontade ao seu pai: professou, com o nome de Maria do Céu. E um dia, muito tempo depois da morte de Simão, encontrando-se num convento em Orense, (5) foi chamada de urgência para assistir aos últimos momentos de um pobre ladrão. Ela admirou-se: — É a mim que ele deseja falar, senhor padre capelão? — Sim, madre. — Mas... não o conheço... — Ele insiste. E penso que deve fazer-lhe a vontade. — Mas... porquê? — Deus é grande! Vá, reverenda madre! Vá, enquanto a vida não se apaga daquele corpo... E madre Maria do Céu saiu a caminho da prisão. A atmosfera era pesada. A luz fraca. Madre Maria do Céu sentia-se confusa, nem sabia bem porquê. Aproximou-se do preso. Vendo-a, este reanimou-se um pouco: — Madre, minha madre, eu sei que vou morrer! Por isso vos chamei. — Mas... porquê? — Porque só a vós, madre Maria do Céu, outrora noviça de Santa Clara, quero confessar um segredo. — Que segredo? — Um segredo que tem sido o remorso de toda a minha vida! — Dizei, então! Respirando a custo, o prisioneiro confessou: — Sou um miserável gatuno, minha madre! Suavemente, ela retorquiu-lhe: — É a Deus, Nosso Senhor, que tendes de dar contas dos vossos actos, e não amim! — É certo... Mas o que tenho para dizer-vos... interessa-vos pessoal­mente! A freira abriu os olhos como quem não entende bem, mas não inter­rompeu o moribundo. Este continuou, embora a custo: — Lembrais-vos ainda de Simão Pires? Este nome soou como dobrar de finados no coração da pobre freira. Receou ter ouvido mal. Trémula, perguntou: — Dissestes... Simão Pires? — Sim! — E... porque me falais dele? — Porque... fui eu que o conduzi à morte! — Vós? Como? — Fui eu que roubei os cálices de ouro e as sagradas partículas da igreja de Santa Engrácia! Sabia que ele passava ali todas as noites com o cavalo de cascos entrapados para vos ir ver. A freira murmurou: — Oh, meu Deus... poupai-me! Mas o moribundo continuou: — Assim... facilmente fiz recair as suspeitas sobre Simão Pires... Calculava que devia gostar muito de vós e não desejasse comprometer--vos. Mas agora... agora que vou morrer... precisava desabafar! Talvez o meu castigo seja menor!... A freira não conseguiu suster as lágrimas. Mas os votos que fizera haviam-na desligado das coisas mundanais. Ergueu-se e murmurou: — Que Deus vos perdoe, como eu vos perdoo! E silenciosamente retirou-se para o seu convento. Morreu o ladrão. Morreu depois a madre Maria do Céu. Nada pare­cia memorar o triste caso de Santa Engrácia. Mas um facto bem singular acontecia: as obras do novo templo, começadas quando da execução de Simão Pires, dir-se-ia não mais terem fim! E de tal modo que o povo se habituou a sentenciar acerca de tudo que não chega ao seu termo: «Ora! É como as obras de Santa Engrácia!» (6)

FIM

(5) — ORENSE — Cidade da Galiza, capital da província do mesmo nome, situada na margem esquerda do rio Minho. (6) — AS OBRAS DE SANTA ENGRÁCIA — Expressão tipica­mente lisboeta, que o povo emprega quando pretende designar aqui­lo que foi começado e não mais se acaba. Esta expressão surgiu do facto, que se tornou jocoso, das obras da igreja de Santa Engrácia não mais chegarem a bom termo, o que parecia confirmar a inocên­cia do pobre Simão Pires.