Simão tapou o rosto, sem dizer palavra. Mas no íntimo do seu coração gritava desesperadamente um nome: Violante!
O burburinho aumentava. A multidão comprimia-se. A execução ia ter o seu início, mesmo em frente da nova igreja de Santa Engrácia, cujas obras já tinham começado.
Cabisbaixo, sempre silencioso, Simão Pires deixou-se conduzir. As cerimónias para tirar a vida a um homem sob a égide da Justiça são morosas e solenes. Simão assistiu a tudo como se estivesse ausente. Amarraram-no sobre a pira de lenha. Acenderam a fogueira. Mas quando as labaredas envolveram o corpo de Simão, este gritou desesperadamente:
— É tão certo morrer inocente do que me acusam, como estas obras da igreja nunca mais acabarem!
O povo que o escutou entreolhou-se, confuso. Que teriam a haver as obras da igreja com o roubo que ele cometera? O povo só mostrou curiosidade enquanto Simão deu sinais de vida. Mal o viram morto, todos se foram embora, como quem regressa a casa após um espectáculo. E tudo quanto se relacionava com o roubo pareceu morrer com ele.
Os anos foram seguindo. Imperturbáveis. Sem descanso. Violante, a jovem e gentil noviça de Santa Clara, fez a vontade ao seu pai: professou, com o nome de Maria do Céu. E um dia, muito tempo depois da morte de Simão, encontrando-se num convento em Orense, (5) foi chamada de urgência para assistir aos últimos momentos de um pobre ladrão. Ela admirou-se:
— É a mim que ele deseja falar, senhor padre capelão?
— Sim, madre.
— Mas... não o conheço...
— Ele insiste. E penso que deve fazer-lhe a vontade.
— Mas... porquê?
— Deus é grande! Vá, reverenda madre! Vá, enquanto a vida não se apaga daquele corpo...
E madre Maria do Céu saiu a caminho da prisão.
A atmosfera era pesada. A luz fraca. Madre Maria do Céu sentia-se confusa, nem sabia bem porquê. Aproximou-se do preso. Vendo-a, este reanimou-se um pouco:
— Madre, minha madre, eu sei que vou morrer! Por isso vos chamei.
— Mas... porquê?
— Porque só a vós, madre Maria do Céu, outrora noviça de Santa Clara, quero confessar um segredo.
— Que segredo?
— Um segredo que tem sido o remorso de toda a minha vida!
— Dizei, então!
Respirando a custo, o prisioneiro confessou:
— Sou um miserável gatuno, minha madre! Suavemente, ela retorquiu-lhe:
— É a Deus, Nosso Senhor, que tendes de dar contas dos vossos actos, e não amim!
— É certo... Mas o que tenho para dizer-vos... interessa-vos pessoalmente!
A freira abriu os olhos como quem não entende bem, mas não interrompeu o moribundo. Este continuou, embora a custo:
— Lembrais-vos ainda de Simão Pires?
Este nome soou como dobrar de finados no coração da pobre freira. Receou ter ouvido mal. Trémula, perguntou:
— Dissestes... Simão Pires?
— Sim!
— E... porque me falais dele?
— Porque... fui eu que o conduzi à morte!
— Vós? Como?
— Fui eu que roubei os cálices de ouro e as sagradas partículas da igreja de Santa Engrácia! Sabia que ele passava ali todas as noites com o cavalo de cascos entrapados para vos ir ver.
A freira murmurou:
— Oh, meu Deus... poupai-me! Mas o moribundo continuou:
— Assim... facilmente fiz recair as suspeitas sobre Simão Pires... Calculava que devia gostar muito de vós e não desejasse comprometer--vos. Mas agora... agora que vou morrer... precisava desabafar! Talvez o meu castigo seja menor!...
A freira não conseguiu suster as lágrimas. Mas os votos que fizera haviam-na desligado das coisas mundanais. Ergueu-se e murmurou:
— Que Deus vos perdoe, como eu vos perdoo!
E silenciosamente retirou-se para o seu convento.
Morreu o ladrão. Morreu depois a madre Maria do Céu. Nada parecia memorar o triste caso de Santa Engrácia. Mas um facto bem singular acontecia: as obras do novo templo, começadas quando da execução de Simão Pires, dir-se-ia não mais terem fim! E de tal modo que o povo se habituou a sentenciar acerca de tudo que não chega ao seu termo: «Ora! É como as obras de Santa Engrácia!» (6)
FIM
(5) — ORENSE — Cidade da Galiza, capital da província do mesmo nome, situada na margem esquerda do rio Minho.
(6) — AS OBRAS DE SANTA ENGRÁCIA — Expressão tipicamente lisboeta, que o povo emprega quando pretende designar aquilo que foi começado e não mais se acaba. Esta expressão surgiu do facto, que se tornou jocoso, das obras da igreja de Santa Engrácia não mais chegarem a bom termo, o que parecia confirmar a inocência do pobre Simão Pires.
3 comentários:
Espero que não fique por aqui, estou ansioso por uma nova história... agora que me habituei a seguir os "contos no blog!"
best regards, nice info Casino night party idea Westbury high school 2003-2004 football roster personal computers timeshare for rent myrtle beach nsa domestic surveillance gonzales Buy meridia hiroshima remembers a bomb Phendimetrazine slimming drug Canister cleaners eureka vacuum information
best regards, nice info down blouse gmac car loan http://www.grundy-rain-jackets.info Kudelski patents home insurance 914 porsche parts and accessories car cover No+contact+lens+solution
Enviar um comentário